23 de nov. de 2008

Kotula, Negri, neve e outras bencaos

Sábado, 3h 15 da tarde. Saio para passar o resto do dia na casa de uns amigos. A previsao é de neve e os termometros estao abaixo de zero, mas o céu azul já tinha acabado com as minhas expectativas. Sem problemas, passar umas horinhas com o Casal Kotula-Negri já é sempre, em si só, um acontecimento especial.

Ela ficou grávida aos 17, era hippie em 70 e uma vez fugiu de casa para Paris - só pq ficava lá o único cinema que passava o filme que ela queria assistir. Ele se mudou para Londrina sozinho aos 16, foi da selecao de volei paranaense e viajou pelo mundo por anos com um grupo de artitas androgenos, fazendo a boca de muita gente cair. Quando eles se conheceram, durante uma turne do grupo de teatro Estupidas, do qual ele fazia parte, ela era uma alema linda, independente, dos olhos azuis. Ele um brasileiro dez anos mais novo cheio de charme e liberdade. Eles se apaixonaram e em poucos dias jutaram as trochas. Na Berlin ocidental de outros tempos -tao dourados como eles costuma dizer - tiveram o melhor cabaré de cidade, com tres apresentacao diárias que fariam qualquer corpo militar brasileiro da época decrater a prisao do grupo inteiro de artistas e fechamento da casa. Nesses 32 anos juntos, participaram de filmes, foram tema de documentários, viajaram por todo canto, viram o muro cair, a alemanha mudar, os netos crescer. Hoje sao minha companhia predileta.

Sempre que chego eles estao juntos pintando. Ela me oferece uma taca de vinho e ele um pega no baseado. Sentamos na sala que tem toda uma aurea especial. O aconchego que ele criou com o incrivel dom deixar as coisas exatamente do seu lugar se une as centenas de livros dela que cobrem a parede com obras que vao desde Kafka e Nietzsche até, porque nao, Coelho. E ficamos assim, por horas, conversando. Eles me contam sobre a guerra, os tempos de muro e todos as consequencias que nem imaginei sobre a sua queda. Me falam de vida, de amor e da busca do eu. Morro de rir com as histórias da época da Cabaré ou quando eles resolvem discutir as diferencas culturais entre alemaes e brasileiros. E quando a coisa ferve é um festival de línguas. Sem que eu acompanhe as mudancas, eles passam do alemao para o frances, do ingles para o italiano e de repente, quase sem querer, até escapa o portugues. Quando bate a fome nos mudamos para a cozinha. Enquanto ele prepara a comida - ontem, um prato tipico alemao - ela fica em volta tentando mudar a receita. A uma distracao dele, ela vira a lata de leite condensado na panela, enquanto ele grite: Chega Karine! Mas que teimosia! e ela olha pra mim rindo, com cara de menina moleca. Mas ela no fundo sabe que ele cozinha como ninguém. Meus jantares nos Kotula-Negri estao entre as melhor refeicoes que fiz. Mais um taca de vinho, outro baseado e a última garfada que resta na panela. Enquanto ela me conta que sua filha se chama Simone por causa de Beauvoir ele procura no quarto um video de mais ou menos 1980 com um show que fizeram chamado As Crises, que metia o pau em pelo menos meia dúzia de países, e que nao poderia ser mais atual.

Ela é de leao e ele também. Ela pintou um quadrinho, que ele pendurou na cabeceira da cama. Ele pintou outro quadrinho, que ela também colocou na cabeceira da cama. Ele sempre lhe dá rosas, as prediletas dela. Ela nunca deixa de lembrar dele quando ve anjinhos, que ele adora. Duas criaturas especias que me ensinaram sobre respeito, amor, amizade. Duas bencaos que estao me ajudando mais do que imaginam na formacao do eu que tanto vim buscar. Dois amigos para a vida, que quando voltar para o Brasil, nao vou ter coragem de deixar. Ontem avisei: Netuno, voce e a Karine voltam comigo.

Enfim ela se canca, dá um beijinho de boa noite nele e vai dormir. Enquanto ele bola o último baseado (impossivel competir com o Netuno, ele derruba qualquer um sem perder a linha) ele fala de um trecho do livro que está lendo, sobre as bencaos que a gente recebe da vida e como é só estar aberto para recebe-las. Hora de despedir. Visto meu caso de urso, pego o quadrinho que ganhei - que lógico, vai direto para a cabeceira da minha cama - e respiro fundo pra encarar meu caminho de volta para casa. Faz um baita frio, já é tarde - mais de 1h da manha - e o metro pode demorar pra chegar. Além do mais, moro exatamente do outro lado da cidade, no Ost, como eles chamam o antigo lado comunista. Abrindo a porta, o Netuno diz: tá tudo branquinho lá fora. Enquanto estava lá dentro nao percebi, mas nevou muito. Como se já nao tivesse recebido bencaos suficientes naquela noite, volto para casa por uma Berlin completamente branca. Com um sorriso de crianca que nao me saiu do rosto, chutei a neve e corri pelos carros fazendo bolinhas com as maos enquanto escutava Joao Gilberto. Assim como o casal Kotula-Negri, eu hoje acredito em anjos.

3 comentários:

Pi disse...

Eiiii consigo imaginar exatamente tudo o que você sentiu!!!

1 - Porque ja vi Berlin, branquinha e já brincamos na NEVE

2- Porque ja sentei na cozinha esperando o planeta netuno cozinhar

3 - Porque ja bebi vinho com voces naquela mesa e vi as scenas que vc descreveu...

:)

Uma Ju disse...

fê, que lindo esse texto. é tão visual, é chique.
sabe, morei em cuba por "un ratico", e lá conheci uma casalzinho também muito especial. um dia tento contar a história deles "a la flor de liz". por ora, fico na sua, e me pergunto se essas particularidades, essas coisinhas que floreiam a história, só são tão legais por conta da arte dos líderes comunistas, sabe?
quando estiver aqui, em sp, com ou sem seus amigos, falaremos sobre...
beijogrande.

Camilla disse...

que lindo fe, nao conhecia seu blog! lembrei dos seus olhos brilhando quando me contou deles ai em berlin...! completou a imagem que tinha pelo seu discurso!
voce leu os livros do hesse ou estao na cabeceira ainda?! beijos querida. cami.