21 de abr. de 2009

A descoberta da Vida

A cada viagem que faco, a cada visita que recebo, a cada passeio que dou, palavra que aprendo, pessoa que conheco, a cada flor que brota, a cada sorriso que ganho, a cada paisagem que contemplo, alguma coisa dentro de mim dilata. Em toda decisao tomada, passo dado, dor compreendida, em todo momento vivido na presenca, na reuniao de tudo que sou, algum nó se desfaz em mim, alguma luz se acende, algum medo se perde. Tudo que existe me diz alguma coisa. Nessas pequenas e graduais iluminacoes liberto o eu de alguma coisa que nao é. Deixo o eu livre para ser cada vez mais eu. A compreensao se revela em seu tempo, o caminho mostra seu sentido. E entendo! Nao devo me tornar nada. Sou a cada instante o maximo que poderia ser. E quanto mais compreendo e vivo isso, mais sou, mais me sensibilizo com existir. E eu está ficando imensa, e a vida esta ficando imensa. Depois do frio, da solidao, do vazio, do sono, do desespero, do perder-se, do cinza tudo dentro de mim, assim como tudo a minha volta, renasce, acorda se abre mais forte, mais vivo, mais sedento, mais faminto do que um dia já foi. Hoje percebo as pedras pelas quais passei e agradeco imensamente ao que cada uma delas me disse e me fez sentir. A vida tem seus segredos. Os milagres só existem para aqueles que acreditam. A busca deve ser desmedida, pois é infinita. Até a lama tem sua beleza, até a melancolia tem seu charme e a dor pode ser bonita pq tb é uma forma de enxergar e de nos fazer entender com maior valor aquilo que nao é dor. O importante é beber do limao sem, no entanto, se deixar azedar. Depois do amargo, o mesmo doce de antes torna-se mel. Passar pelos ventos da vida sem cair nas armadilhas faceis do medo, da raiva, do desamor e do ego, acabam por nos colorir. A vida é uma só. Essa foi a grande compreensao. E nao gostar do milagre do eu ou ser pela metade seria um desrespeito ao grande milagre, seria enfim, o maior de todos os pecados. O eu e o agora sao as unica coisas que me pertencem. E que seja assim sempre. Amém

15 de abr. de 2009

Elas sao muitas por aqui

"Ich war, ich bin, ich werde sein"
Rosa Luxemburg

13 de abr. de 2009

Pq isso tb quis me dizer aguma coisa

Rumo a Paris. Antes mesmo de chegar, a cidade das luzes já conta alguns segredos e dá uma prévia dos milagres que podem acontecer por lá.
Por Caio Fernando de Abreu

Paris — Toda vez que chego a Paris tenho um ritual particular. Depois de dormir algumas horas, dou uma espanada no rodenirterceiromundista e vou até Notre-Dame. Acendo vela, rezo, fico olhando a catedral imensa no coração do Ocidente. Sempre penso em Joana d’Arc, heroína dos meus remotos 12 anos; no caminho de Santiago de Compostela, do qual Notre-Dame é o ponto de partida — e em minha mãe, professora de História que, entre tantas coisas mais, me ensinou essa paixão pelo mundo e pelo tempo.

Sempre acontecem coisas quando vou a Notre-Dame. Certa vez, encontrei um conhecido de Porto Alegre que não via pelo menos á2o anos. Outra, chegando de uma temporada penosa numa Londres congelada e aterrorizada por bombas do IRA, na época da Guerra do Golfo, tropecei numa greve de fome de curdos no jardim em frente. Na mais bonita dessas vezes, eu estava tristíssimo. Há meses não havia sol, ninguém mandava notícias de lugar algum, o dinheiro estava no fim, pessoas que eu considerava amigas tinham sido cruéis e desonestas. Pior que tudo, rondava um sentimento de desorientação. Aquela liberdade e falta de laços tão totais que tornam-se horríveis, e você pode então ir tanto para Botucatu quanto para Java, Budapeste ou Maputo — nada interessa. Viajante sofre muito: é o preço que se paga por querer ver “como um danado”,feito Pessoa. Eu sentia profunda falta de alguma coisa que não sabia o que era. Sabia só que doía, doía. Sem remédio.

Enrolado num capotão da Segunda Guerra, naquela tarde em Notre-Dame rezei, acendi vela, pensei coisas do passado, da fantasia e memória, depois saí a caminhar. Parei numa vitrina cheia de obras do conde Saint-Germain, me perdi pelos bulevares da le dela Cité. Então sentei num banco do Quai de Bourbon, de costas para o Sena, acendi um cigarro e olhei para a casa em frente, no outro lado da rua. Na fachada estragada pelo tempo lia-se numa placa: “II y a toujours quelque choe d’abient qui me tourmente” (Existe sempre alguma coisa ausente que me atormenta) — frase de uma carta escrita por Camilie Claudel a Rodín, em 1886. Daquela casa, dizia aplaca, Camille saíra direto para o hospício, onde permaneceu até a morte. Perdida de amor, de talento e de loucura.

Fazia frio, garoava fino sobre o Sena, daquelas garoas tão finas que mal chegam a molhar um cigarro. Copiei a frase numa agenda. E seja lá o que possa significar “ficar bem” dentro desse desconforto inseparável da condição, naquele momento justo e breve — fiquei bem. Tomei um Calvados, entrei numa galeria para ver os desenhos de Egon Schiele enquanto a frase de Camille assentava aos poucos na cabeça. Que algo sempre nos falta — o que chamamos de Deus, o que chamamos de amor, saúde, dinheiro, esperança ou paz. Sentir sede, faz parte. E atormenta.

Como a vida é tecelã imprevisível, e ponto dado aqui vezenquando só vai ser arrematado lá na frente. Três anos depois fui parar em Saint-Nazaire, cidadezinha no estuário do rio Loire, fronteira sul da Bretanha. Lá, escrevi uma novela chamada Bem longe de Marienbad , homenagem mais à canção de Barbara que ao filme de Resnais. Uma tarde saí a caminhar procurando na mente uma epígrafe para o texto. Por “acaso”, fui dar na frente de um centro cultural chamado (oh!) Camille Claudel. Lembrei da agenda antiga, fui remexer papéis. E lá estava aquela frase que eu nem lembrava mais e era, sim, a epígrafe e síntese (quem sabe epitáfio, um dia) não só daquele texto, mas de todos os outros que escrevi até hoje. E do que não escrevi, mas vivi e vivo e viverei.

Pego o metrô, vou conferir. Continua lá, a placa na fachada da casa número 1 do Quai de Bourbon, no mesmo lugar. Quando um dia você vier a Paris, procure. E se não vier, para seu próprio bem guarde este recado: alguma coisa sempre faz falta. Guarde sem dor, embora doa, e em segredo.

Caio Fernando de Abreu
O Estado de S. Paulo, 3/4/1994