4 de mai. de 2009

O Grande Encontro

Chega em casa. Reina o silencio de sempre. O mesmo que de início a angustiava, tornou-se um amigo, seu deleite de paz. Coloca a bolsa amarela sobre a mesa de centro, desabotoua o casaco e deixa que o algodao do lenco deslize pelo seu pescoco enquanto sente seu próprio perfume. Joga as pecas na velha poltrona encostada á parede e acende delicadamente cada um dos abajures. Vai até a cozinha, abre a geladeira - nem vazia, nem farta - pega o suco de maca e toma-o todo, num único gole. É incrivel a sede que vem sentindo. Volta a sala, enrola e acende um cigarro. Apoia o cinzeiro na mesa e o som agudo da porcelana na madeira ecoa pelo ar. Pode ouvir cada um de seus movimentos, cada ruido da casa com brilhante nitidez. Encosta-se. Aquela estranha sensacao volta a tomar sua alma. Sempre na solidao desse canto sente como se o mundo, o tempo, a vida congelasse do lado de fora. Sente-se como se estivesse grávida de si. Nao. Sente-se gestada por si, acolhida e protejida em seu próprio útero. O coracao dispara. Ela respira. Deixa a fumaca sair pela boca. "Está tudo bem", diz de si para si. A cabeca cai na borda do sofa e os olhos deslizam pela casa. Ela se reconhece alegre na reuniao daquela mobilha. Nessa casa, pela primeira vez tao e somente sua, compreende-se a si mesma e gosta. Nunca imaginou-a assim, e no entanto, ela vai além do que sentia-se capaz de fazer, além do que sentia-se capaz de ser. Alias, nao tinha qualquer pretensao de que ela se tornasse assim, tao especial. Sua casa, seu canto, seu colo aconteceu tao lentamente, tao naturalmente, que quando deu-se por si, já existia. O antigo sofa de veludo encontrado em frente ao seu prédio no dia do fechamento do contrato, o aboujur frances barganhado no mercado de pulgas, um retrato seu pintado por uma amiga que partiu, as estantes recheados pelos livros que leu, o poster comprado numa cidade polonesa, o palhaco de argila dado pelo pai, o tapete de chita trazido pela mae, os post its espalhados pela parede lembrando o que ainda deve ser feito, a máquinha de lavar grafitada comprada numa tarde de verao, o relógio quebrado que leva a inscricao Made in Deutschland DDR. Quase tudo que tem foi dado ou encontrado. Cada movel foi trazido com a ajuda de uma mao amiga diferente. Foram chegando aos poucos, como quem forma uma família. Uns vieram no frio, outros em chuva, alguns ainda cobertos por flores da estacao. Nos poucos metros quadrados da casa, nasceram pequenos cantos, cada um para um estado de espirto dela. Ali ela aprendeu a lavar e cozinhar, a dormir solitaria no escuro ou aguentar sem desespero as noites de insonia, a engolir a dor e se consolar, a rir e falar sozinha, a cair e levantar.

Ela volta a respirar. Passaram-se horas, mas ela nao sente. Acende outro cigarro, o silencio continua o mesmo. Acariciando o fiel amigo, ela escorrega a mao pelo sofa e quase agradece pelas pessoas que ele recebeu. Amigos de passagem, cheios de destinos, amigos da cidade que perderam o último trem. Os olhos caem para o chao. O carpete tem tantas marcas. Tacas de vinho derramadas, buracos de cigarro, tinta acrílica, até chumbo derretido das brincadeiras do reveillon e pequeninos cacos de vidro ainda perdidos que vez ou outra cortam seu pé lembrando um dia de desilusao. Entao ela sorri! sorri largo e espontaneamente à si. "Sao repetidamente intensos meus encontros comigo aqui. E eles nao cessam nunca, nem perdem sua forca!" Templo da sincera entraga de si para si, essa casa surge surpriendentemente como a primeira exteriorizacao concreta do que é e nem sabia-se sendo. Como uma flor que brota sem ser plantada, fruto da única razao de querer tanto existir.

2 comentários:

Pi disse...

Ei.. adoro essa casinha :)

Keren disse...

Adorei poder ter sentado no seu sofa! Seu espaco, seu canto, sua casa...achei tudo uma graca!!! um lugar especial!